Ninguém
tem o direito de ignorar o aspecto básico da conjuntura política inaugurada
pela derrota de terça-feira passada, que definiu o afastamento provisório de
Dilma da presidência da República e ameaça inaugurar um período de
regressão em toda linha nas conquistas obtidas pelos de 2003 para cá.
Basta
recordar o conteúdo superior da intervenção final do advogado geral da União
José Eduardo Cardozo nos momentos que antecederam a votação.
Foi
uma argumentação clara, articulada, irrespondível, que ajuda a compreender que
uma decisão por 55 votos a 22 só poderia ocorrer no terreno apodrecido do
Congresso brasileiro, notoriamente corrompido interesseiro, essencialmente desfavorável
aos interesses da maioria que acorda cedo e paga as contas do mês com o suor de
seu trabalho.
O
placar da farsa expressa uma decisão vergonhosamente manipulada,
barganhada em novos e velhos postos ministeriais e adjacências, produto da
recuperação política de um grupo social minoritário mas politicamente poderoso
para abater um projeto político vitorioso, responsável por avanços e melhorias
deixaram marcas inéditas na história do país.
Para
começar um debate urgente e necessário sobre o que deve ocorrer nas próximas
semanas e meses, onde corre-se o risco de ver uma situação ainda
provisória transformar-se num derrota definitiva, cabe reconhecer determinadas
verdades essenciais.
Cabe,
para começar, descartar noções deterministas que tentam descrever o atual
momento pela visão fatalista de "fim de ciclo" e outra
simplificações, que sugerem um tempo já vencido, uma derrota já consumada e
internalizada. É preciso ter força para recordar que o debate político mantém
os mesmos fundamentos de uma sociedade dividida em classes e seus conflitos
insuperáveis -- e que a questão consiste em apontar alternativas viáveis a cada
momento. Seja em ocasiões objetivamente favoráveis, seja em conjunturas mais
difíceis.
Não
é nostalgia recordar que a partir de 2003 os brasileiros viveram um processo
inédito de mudanças que beneficiaram a maioria pobre e explorada que, com todos
os limites e inúmeras imperfeições, trouxe mudanças nunca vistas desde a
chegada das caravelas de Pedro Alvares Cabral às terras de Santa
Cruz. Esta herança deve ser reformada naquilo naquilo que precisa ser
melhorado. Isso deve ocorrer a partir de um debate sem reservas prévias, que
impediriam uma discussão necessariamente profunda e ampla. Mas o saldo é
positivo e merece ser defendido e reconstruído, em vez de lanhado em cenas
masoquistas de autoflagelação.
A
alternativa concreta é conhecida. Representa o retorno em alta velocidade a um
país que perdeu o comando sobre seu destino e oferece a mão de obra de
seus habitantes como mercadoria barata a ser explorada pelo mercado
internacional, na atualização de um processo que se repete desde tempos
coloniais, favorecendo a permanência de uma nação inviável e dependente na qual
0,1% controla e negocia a riqueza produzida por 99,9%.
A
recuperação deste projeto passa pelo retorno às raízes de uma força política
construída na derrota do regime militar, que permitiu a organização
independente da população explorada em partidos próprios, a começar pelo PT, e
centrais sindicais antes proibidas, mas não só -- e está na base da democracia
política, de caráter cada vez menos elitista, que se expressa a partir da
Constituição de 1988.
Ninguém
sabe como terminam períodos de ataque a democracia -- como os dias que correm,
que tiveram um ponto de passagem decisivo na decisão de 55 a 22. Mas todo sabem
que estas mudanças começam por uma ofensiva contra as organizações
populares, as entidades de base, a desmoralização de lideranças mais
expressivas, alvo de perseguição política e medidas repressivas típicas
de períodos de ditadura.
Como
indicam as mobilizações importantes mas pouco numerosas ocorridas nos
últimos dias, até no dia da decisão, a maioria da população vive um processo
político já identificado. Compreende a necessidade de defender a democracia e
boa parte já reconhece o caráter antidemocrático do afastamento da presidente.
Não tem dúvida de que impeachment sem prova é golpe -- visão confirmada por uma
recuperação da própria Dilma nas últimas pesquisas, depois que passou a
resistir às medidas que levaram a seu afastamento.
Mas,
num país que irá completar um segundo ano de recessão, com desemprego em alta e
salários em queda, não é possível debater a recuperação da democracia sem
explicar o caminho para a recuperação da economia, necessária para proteger
direitos e conquistas que ajudaram a fazer a vida menos difícil e até melhor,
em muitos casos. Não dá para aceitar a reforma da Previdência. Nem o fim da
CLT, mesmo que disfarçado. Nem cortes em benefícios sociais em nome da
austeridade com o bolso dos mais pobres.
Este
é o primeiro debate a ser feito nos dias que correm, e envolve a denuncia
permanente das medidas recessivas, impopulares, que marcam os pronunciamentos
do governo provisório. A luta pela recuperação da democracia não será feita sem
a transformação das próprias forças mobilizadas neste processo, num processo
combinado.
Além
de recuperar um governo, cabe compreender que será necessário recuperar uma
ideia.
O
traço característico do período que vivemos, inaugurado pela
democratização que marcou o fim da ditadura, é conhecido. Pela primeira na
história a maioria da população foi capaz de se organizar politicamente, de
forma independente, em defesa de interesses que ela mesma reconhece como
prioridades. Nessa situação, é capaz de se defender por conta própria e tenta
impedir toda medida para que seja submetida a luxos e caprichos estranhos a
suas necessidades. Na conjuntura aberta por uma decisão de caráter golpista,
ainda que realizada no interior de ritos formais da Constituição, cumpridos de
forma pervertidas, o controle, repressão e mesmo destruição de organização
populares é mais do que uma opção -- é uma necessidade para se impedir ações de
repúdio e resistência.
Não
por acaso, embora Dilma seja o alvo primeiro e hoje mais visível, o objetivo
profundo e permanente dos ataques envolve o destino de Luiz Inácio Lula da
Silva. Em torno dele se concentram -- em qualquer caso -- as possibilidades de
renascimento e recuperação. Presença obrigatória na despedida de Dilma, como
principal personagem de uma obra que os brasileiros aprovam e não esquecem --
como mostram seus índices de aprovação -- Lula deixou o Palácio com a biografia
exposta. A grande interrogação é saber o destino que lhe será reservado pela
Lava Jato, da qual se tornou troféu obrigatório e mais luminoso.
Em
conversas reservadas que manteve em Brasília, Lula deixou claro que considera
que o Partido dos Trabalhadores deve apressar o debate interno e avançar na
discussão de rumos a tomar no próximo período, inclusive pela escolha de uma
nova direção. A pelo menos um interlocutor, que perguntou sua opinião sobre a
proposta de realizar novas eleições presidenciais, em outubro, Lula
esclareceu sua posição: ao menos por enquanto, continua contra a ideia.
As
primeiras medidas tomadas pelos vencedores de terça-feira têm como prioridade
impedir um julgamento sereno e justo, capaz de mostrar a natureza fictícia,
forçada, de denúncias construidas artificialmente -- alguém irá negar que o
processo foi este? -- para incriminar Dilma de qualquer maneira.
A
pressa tem como finalidade eliminar os principais vestígios do governo Dilma,
titular de uma legitimidade que os novos governantes não possuem e nunca terão,
pois o problema está na origem.
Vem
daí a necessidade de realizar o julgamento de Dilma num processo rápido, que se
inicia com a decisão de suspender o recesso de junho, garantindo o prazo
necessário para se fornecer combustível às eleições de outubro, encaradas como
a estreia da nova ordem, seu primeiro teste.
Ao
assinar um despacho no qual informava que não irá aceitar debater questões de
mérito sobre o impeachment, o ministro Teori Zavaski deixou claro que irá
fazer sua parte para favorecer um julgamento rápido, contrariando visão
anterior do presidente Ricardo Lewandovski. A divergência mostra um STF dividido,
o que nem sempre favorece quem bate a sua porta em busca de auxílio para
defender garantias constitucionais.
Do
ponto de vista de Temer e seus aliados, a prioridade eleitoral nem é
vencer mas esmagar os adversários capazes de exibir musculatura para retornar
em 2018.
Formado
por legítimos representantes daquilo que a política brasileira tem de pior --
boa parte recrutada, como se deve admitir, nas fileiras secundárias dos
governos Lula-Dilma -- o risco do governo Temer fazer água antes da hora é
real. Nascido a sombra da Lava Jato, sete de seus ministros já foram citados na
operação. Falta aguardar pelo ministro do STF que irá interditar a posse de
quem passará a ter direito ao foro privilegiado que se negou a Lula, em tom
indignado. Não é piada pronta, meus amigos. É frieza de profissional. Por isso,
todo cuidado é pouco, quando se recorda que até autores do pedido de
impeachment já reconheceram que o presidente em exercício merece ser acusado,
investigado e condenado -- se este for o caso -- pelas mesmas denúncias
apontadas contra Dilma.
Chega
a ser humilhante, vamos admitir. Cabe transformar essa vergonha em força.
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