Em audiência pública, comunidades de
ribeirinhos, garimpeiros e indígenas da Volta Grande do Xingu confrontaram
dados do Ibama e da Norte Energia, que se recusou a participar do diálogo
Os moradores da Volta Grande se
reuniram no último dia 21 de março com autoridades envolvidas nos dois
empreendimentos, em audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal
com a participação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, que
licencia Belo Monte), Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas,
que licencia Belo Sun), Fundação Nacional do Índio (Funai), Defensoria Pública
da União (DPU), Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE), Ministério Público
do Estado do Pará (MPPA), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e
pesquisadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Isa
(Instituto Socioambiental) e UFPA (Universidade Federal do Pará) que monitoram
a situação da Volta Grande do Xingu. Representantes da empresa Belo Sun também
compareceram, mas a Norte Energia, que é responsável direta pela maioria dos
impactos, se recusou a participar da audiência pública.
A procuradora da República
Thais Santi abriu a audiência pública lembrando que as comunidades da Volta
Grande do Xingu são aquelas que se sacrificam para que Belo Monte possa gerar
energia. É na Volta Grande que fica o Trecho de Vazão Reduzida, o trecho do
Xingu que vai ficar sob monitoramento por seis anos fornecendo 80% de sua água
para as turbinas da usina. “A pergunta que fazemos aqui é: o trecho de vazão reduzida
permite a vida no Xingu?”, questionou Thais. O morador da ilha da Fazenda,
Gilberto Lisboa, foi o primeiro a falar sobre a situação de pobreza em que
todos estão vivendo e conta que moradores abandonam as casas, sem indenização,
pela dificuldade de viver no local.
"Nós não queremos sair da
Volta Grande, mas precisamos de um lugar em que seja possível continuar
vivendo", diz Gilberto Lisboa. Dona Deca, técnica de enfermagem e
professora da região, que fez dezenas de partos e alfabetizou dezenas de crianças,
reclamou das promessas não atendidas. "Nós somos gente também", disse
enquanto mostrava fotos do posto de saúde e da escola que foram fechados após a
chegada de Belo Monte e de Belo Sun. Em vez de assegurar saúde e educação, os
empreendimentos retiraram esses direitos. "Nós precisamos de uma escola,
precisamos de um posto médico. De quem a gente pode cobrar, se estamos
abandonados", resumiu dona Deca.
Comunidades de garimpeiros da
Volta Grande cobraram das autoridades as décadas de ausência. O estado nunca
foi regulamentar os garimpos na região e quando enfim chegou à Volta Grande foi
para fechar os garimpos e trazer a empresa estrangeira. O fechamento dos
garimpos por Belo Sun, somado à falta de peixes e água causada por Belo Monte,
sufocou a vida econômica da região. Sem projetos ou compensações, moradores
foram reduzidos à miséria e agora a mineradora Belo Sun é apontada como
solução. Para o MPF tal solução é inadmissível. "É obrigação do governo
federal e da Norte Energia garantir a vida na Volta Grande. Qualquer novo
empreendimento só pode ser pensado depois disso", disse a procuradora
Thais Santi.
Os ribeirinhos da Volta Grande
do Xingu, maiores conhecedores do rio e de seus ritmos, não sabem mais como a
água vai se comportar. E também não podem confiar nas previsões da Norte
Energia ou do Ibama, que se mostram duvidosas desde que o rio foi barrado em
novembro de 2015. Após uma enxurrada imprevista que levou pertences e deixou os
moradores em pânico, ocorrida na noite de 25 de janeiro de 2016, estacas foram
colocadas pela Norte Energia ao longo da Volta Grande informando até onde o rio
subiria. Os moradores se orientaram pela informação, fizeram roças e os índios
Juruna enterraram o irmão do cacique Gilliard, Jarliel Juruna, morto afogado em
2016, com base nas estacas da empresa. Mas, apesar das previsões, durante as
chuvas desse ano o riu subiu muito acima das estacas, roças foram perdidas e o
túmulo de Jarliel, alagado.
Durante a audiência, os
moradores fizeram um minuto de silêncio em homenagem a Loquinho Pescador, que
morreu ao tentar atravessar o banzeiro provocado pela barragem. O banzeiro,
área de águas revoltas perto do barramento, de difícil transposição, dificulta
muito que os moradores cheguem à Altamira, pelo risco de naufrágio. Os moradores
reivindicam que sejam mantidas embarcações maiores, pela empresa, para garantir
a transposição segura da barragem pelos moradores da Volta Grande.
Outra situação relatada é a
falta de água potável na Volta Grande. A pesquisadora Cristiane Carneiro, da UFPA,
que monitora as condições da água, explicou que depois do barramento do Xingu
os poços secaram, fazendo com que moradores tenham que andar muito para obter
água ou se submeterem a tomar água de má qualidade, causando doenças em
crianças e adultos. O Ibama, durante a audiência, disse desconhecer o problema
da falta de água potável. A defensora pública do Pará Andreia Barreto apontou
ao Ibama que, assim como no caso de Altamira, os sistemas de saneamento
previstos no licenciamento para a Volta Grande até hoje não estão funcionando,
o que explica em parte a dificuldade de acesso à água potável.
Monitoramento independente - Os índios Juruna e Arara, das terras indígenas Paquiçamba e Arara
da Volta Grande, chegaram juntos ao auditório já lotado por ribeirinhos e
garimpeiros. Eles foram responsáveis por apresentar os dados do monitoramento
independente conduzido pelos Juruna com pesquisadores da UFPA e do Isa. O
cacique Gilliard Juruna exigiu respeito à consulta prévia, livre e informada,
prevista na Convenção 169 da OIT. "Eles levam o ouro e a gente fica com os
rejeitos", disse. "Sempre vivemos na região, não pedimos empreendimento
nenhum e agora estão lá os dois maiores empreendimentos do país e a gente sem
garantia de nada", resumiu.
Zé Carlos, cacique dos Arara da
Volta Grande, lado a lado com os Juruna, lembrou às autoridades que tentaram
dividir os índios para facilitar Belo Monte. Ibama e Funai visitaram as terras
indígenas durante o licenciamento de Belo Monte, fazendo reuniões e garantindo
que mais tarde seria feita a consulta prévia. Em vez disso, enviaram vídeos
dessas reuniões para a Justiça e tentaram alegar que aquilo havia sido a
consulta prévia. "Isso não vai se repetir com Belo Sun", avisa Zé
Carlos. "Nós exigimos nossos direitos e não vamos nos dividir, estamos
juntos".
Os índios confrontaram os
representantes da mineradora Belo Sun para que a empresa não chame seu projeto
de Volta Grande. “Volta Grande é vida e esse projeto é de destruição. Queremos
que se mude o nome desse projeto, não se chame mais de Volta Grande”, disse Bel
Juruna, liderança da terra indígena Paquiçamba. Bel reforçou a exigência de
respeito à consulta prévia, que não foi feita para Belo Monte mas deverá ser
feita pela Belo Sun. O MPF move uma ação judicial exigindo a consulta, que já
tem sentença favorável da Justiça Federal. E os Juruna iniciaram a construção
de um protocolo de consulta para guiar o procedimento. A empresa canadense não
só não iniciou a consulta como falhou em apresentar um estudo de impacto sobre
os indígenas, exigido pela Funai.
As conclusões do monitoramento
independente feito pelos Juruna confrontam diretamente as conclusões produzidas
pela empresa Norte Energia em seus relatórios semestrais, entregues ao Ibama.
Os estudos dos Juruna mostram o desaparecimento gradativo de espécies de peixes
como o pacu, que dependem das cheias do Xingu. Os índios questionaram o Ibama,
que proíbe a pesca do acari-zebra, espécie ornamental endêmica da Volta Grande
e de grande importância econômica para os moradores, mas concedeu licença a
Belo Monte, que colocou a espécie em risco de extinção. Os Juruna e Arara
reivindicaram ao Ibama, durante a audiência, que as conclusões do monitoramento
independente sejam reconhecidas na análise do licenciamento.
O professor Juarez Pezzuti, da
UFPA, apresentou sua análise dos relatórios de monitoramento, tanto dos Juruna
quanto da Norte Energia. Juarez notou que aquilo que foi previsto nos estudos
de impacto ambiental de Belo Monte está se confirmando em todos os dados:
redução da pesca, danos à segurança alimentar, desaparecimento de espécies,
escassez de água. Tudo foi previsto no Eia da usina e os dados coletados até
agora confirmam todos os danos, mas inexplicavelmente relatórios da Norte
Energia concluem que não há impacto. Para Pezzuti, as conclusões da Norte
Energia sistematicamente contradizem os dados e o Ibama vem aceitando os
relatórios da empresa acriticamente.
Vazão reduzida - É da Volta Grande que Belo Monte retirará 80% da água que corre no
Xingu para fazer rodar suas turbinas. Nos documentos do licenciamento, a região
batizada em homenagem à acentuada curva que o rio faz desviando o curso ao sul,
logo após a cidade de Altamira, ganhou um novo nome. O que os moradores
tradicionais chamam de Volta Grande do Xingu, tecnicamente passou a ser chamado
de Trecho de Vazão Reduzida.
A mudança ecológica que
pessoas, animais e plantas vão enfrentar é de tamanha gravidade que Ibama não
teve como assegurar, durante a etapa de estudos, que a região vai sobreviver a
um impacto tão drástico. Por isso, estabeleceu um período de monitoramento de
seis anos, a contar do fim da obra em 2019, durante o qual testará dois
tratamentos diferentes para o Trecho de Vazão Reduzida. É o dito Hidrograma de
Consenso, que foi projetado para que a usina libere, em um ano, o máximo de 4
mil m3 de água para a região e no seguinte, 8 mil m3 de água. O teste sobre a
capacidade de sobrevivência da Volta Grande determinará também a capacidade de
geração de energia de Belo Monte.
O hidrograma chamado de
consenso contradiz a afirmação do próprio Estudo de Impacto Ambiental de Belo
Monte, de que a quantidade de água a ser liberada para assegurar a
sobrevivência da Volta Grande terá que ser de 15 mil m3. O pesquisador Juarez
Pezzuti afirmou que, mesmo com a previsão de que uma vazão menor do que essa
colocaria a região em um estresse hídrico insustentável, o Ibama aceitou que a
vazão máxima de água liberada pela usina para os moradores do Xingu seja de 8
mil m3. Para Pezzuti, a decisão pode acarretar a perda de espécies, porque 50%
delas dependem das inundações sazonais para continuar se reproduzindo.
Belo Sun - A representante da Funai, Janete Carvalho, recomendou mudanças no
monitoramento da Volta Grande e, sobre a tentativa de instalação da Belo Sun,
lembrou o que ocorreu em Mariana. A terra indígena mais próxima da barragem da
Samarco rompida fica a mais de 300 km e até hoje o povo indígena Krenak não tem
água potável suficiente para viver. “Qualquer acidente em Belo Sun vai criar
uma situação de etnocídio. O risco é inaceitável”, disse. Em 2013 a Funai
recomendou à Semas que o licenciamento ambiental só inicie após o tempo de
monitoramento de seis anos da Volta Grande. A Funai afirma que não há estudo
válido de Belo Sun sobre o impacto aos índios.
Para MPF, CNDH, DPU e DPE, o
projeto dos canadenses possui muitas irregularidades, já apontadas em pelo
menos quatro ações judiciais. A consulta prévia não foi respeitada, a
condicionante da licença ambiental da mineração, que exigia apresentação de
estudos indígenas, também não foi cumprida e existem irregularidades fundiárias
que levaram a Justiça do Pará, a pedido da DPE, a suspender a instalação da
Belo Sun.
O MPF também cobrou a
apresentação de um plano de vida para Volta Grande do Xingu e que o Ibama seja
convidado a se manifestar no licenciamento de Belo Sun, diante da sinergia
evidente de impactos entre os empreendimentos. O Secretário de Meio Ambiente e
Sustentabilidade, Luiz Fernandes, afirmou que já convidou o Ibama a participar
e se comprometeu perante a audiência a reiterar o convite para que o Ibama
integre o licenciamento de Belo Sun.
Encaminhamentos - “O plano de comunicação da Norte Energia para a Volta Grande não
existe. O que falta para o Ibama obrigar a Norte Energia a apresentar um plano
de comunicação que funcione? Não é possível que uma comunidade impactada como a
Ilha da Fazenda não tenha uma escola e um posto de saúde, um transporte escolar
digno. O que falta para o Ibama multar a Norte Energia pelo abandono total da
Volta Grande do Xingu?”, questionou o representante do Conselho Nacional de
Direitos Humanos, Francisco Nóbrega.
O Ibama concordou com algumas
das críticas. “As falhas de comunicação são evidentes, até pela ausência da
Norte Energia nessa audiência pública. A falta da Norte Energia aqui prejudica
o debate”, disse Frederico Amaral, representante da Diretoria de Licenciamento
do órgão. Ele propôs que seja estabelecido um cronograma fixo para reuniões com
as comunidades atingidas e mudanças também quanto ao monitoramento das
condições da Volta Grande. Confira todos os encaminhamentos da audiência.
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