Adriana Ancelmo: a vida carcerária no Leblon

Acompanhada de policial  Adriana  Ancelmo ´levada para prisão domiciliar.As joias  se foram,mas sua privada tem assento aquecido (Foto:  Marcelo Theobald / Agência O Globo)











Na noite da quarta-feira (29), um SUV preto andou pelas ruas do Leblon, um dos mais bonitos e valorizados bairros do Rio de Janeiro, com destino a um edifício de luxo, algo rotineiro naquele pedaço abastado da cidade. Uma das passageiras era uma personagem célebre. O SUV era um veículo oficial, mais especificamente da Polícia Federal, desses que alguns ricos e poderosos aprenderam a ter medo e esperar na frente de suas casas de manhãzinha. Dentro, em vez de passageiros comuns, estavam agentes – entre eles uma agente com um fuzil. De óculos, vestida de preto e séria, a passageira não ostentava nada, nenhuma das joias que costumava usar e que hoje estão apreendidas como prova de corrupção, de dinheiro público desviado para bancar luxos. Ao chegar ao destino, o SUV foi recebido com socos e empurrões.
Adriana Ancelmo, de 46 anos, mulher do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, chegou em casa depois de 113 dias no complexo penitenciário de Bangu, em aposentos muito diferentes daqueles que se habituara a frequentar nos áureos tempos como ex-primeira-dama do Rio e advogada de sucesso. Enviada para prisão domiciliar depois de uma decisão judicial, ela causou tumulto na chegada a seu lar, luxuoso graças ao endereço em si e aos recursos que, segundo a força-tarefa da Operação Lava Jato no Rio, foram desviados dos cofres públicos por uma quadrilha liderada por seu marido, a partir de negociações com fornecedores do estado, principalmente empreiteiras. Adriana foi recebida com xingamentos por pessoas que a aguardavam na calçada do prédio onde mora, com o único intuito de hostilizá-la. Enfrentou a situação impassível e séria, com um pouco da empáfia típica dos dias de bonança. Não demonstrava medo nem tristeza.
A vida de Adriana melhorou. Depois de viver em uma cela de Bangu, com uniforme verde, banho frio e todas as durezas das masmorras brasileiras, ela voltou a seu apartamento de 400 metros quadrados. Sem alguns confortos, é verdade. Adriana terá de simular a vida carcerária no Leblon. Deve permanecer sem contato com o mundo exterior, o que significa não receber visitas, não ter telefone, acesso à internet ou mesmo interfone – tudo foi desligado no apartamento. Foi essa a condição imposta pelo juiz da 7ª Vara Federal Criminal, Marcelo Bretas, em decisão confirmada depois pelo Superior Tribunal de Justiça, com base em uma lei sancionada há um ano pela então presidente Dilma Rousseff – que, aliás, adorava ouvir o marido de Adriana, quando governador e seu aliado político, fazer imitações. A lei dá ao juiz a opção de mandar para regime domiciliar o preso provisório que tenha filhos menores de 12 anos. É exatamente essa a condição de Adriana, mãe de dois meninos, um de 10 e outro de 14 – ela não foi condenada.

Adriana sentirá o apartamento vazio. Não estão lá as joias que ela costumava usar e que alimentam boa parte da ira que ela percebeu nas ruas. As investigações da Operação Lava Jato revelaram seu núcleo familiar como o principal beneficiário de um desvio estimado, até agora, em quase R$ 350 milhões. São recursos apeados do caixa de um estado que, em boa parte devido a decisões erradas de Sérgio Cabral, está falido, incapaz de pagar salários e aposentadorias em dia e cujos serviços de segurança e saúde estão praticamente em colapso. Mais do que beneficiária da corrupção, Adriana se lambuzou dela e a ostentou sem constrangimento, ao lado de seu marido, nos oito anos de governo.
Adriana em desfile na Marques de Sapucaí em 2009 (Foto:  Alexandre Cassiano / Agência O Globo)
Adriana e Cabral costumavam fazer constantes viagens a Paris, hoje associadas pelos investigadores não só a passeios, mas a escapadas para movimentar dinheiro sujo, de propina, depositado em contas secretas. Em 2012, o ex-governador Anthony Garotinho, inimigo de Cabral, revelou em seu blog uma série de fotos e vídeos mostrando Cabral, Adriana, assessores, secretários, com suas esposas, curtindo a vida adoidado em uma viagem oficial, na constrangedora companhia de Fernando Cavendish, ex-dono da construtora Delta. A empreiteira viu sua receita se multiplicar algumas vezes graças à proximidade entre Cabral e Cavendish. É dessa viagem a ridícula cena de Cavendish e secretários de Cabral com as cabeças adornadas com guardanapos de pano, uma espécie de apropriação cultural da corrupção, que Garotinho apelidou de a “Gangue do Guardanapo”. Em uma das imagens mais emblemáticas e estarrecedoras da série, Adriana aparece com outras mulheres exibindo a sola vermelha do sapato. Trata-se da marca registrada dos produtos da grife Christian Louboutin, cujos calçados custam a partir de R$ 2 mil o par e podem atingir estratosféricos – para mortais comuns – R$ 5 mil. Adriana também aparece com um anel da joalheria Van Cleef, de Mônaco, que foi pago por Cavendish, a pedido de Cabral. Valor: R$ 800 mil.
De acordo com as investigações, Cabral e Adriana gastaram cerca de R$ 3,9 milhões em 114 joias da grife carioca Antonio Bernardo entre 2008 e 2016. Uma delas foi um conjunto de brincos, colar e anel de turmalina-paraíba, de cor azul, em 18 de julho de 2012, quando Adriana completava 42 anos. O mimo custou R$ 1 milhão. Regra da sobrevivência na corrupção, tudo era pago com dinheiro, por meio do assessor Carlos Miranda, preso com Cabral em Bangu. A joalheria identificava o casal e o emissário por codinomes e não emitia notas fiscais. Por mais que dinheiro não fosse problema, o grupo tinha o curioso hábito de parcelar algumas compras, como um reles consumidor assalariado. Em 2008, Adriana comprou uma peça exclusiva, chamada Adriana A., por R$ 200 mil. Pagou em oito prestações, com cheques pré-datados – casados, sabe-se hoje, com desembolsos mensais de propina que a Andrade Gutierrez revelou ter feito ao ex-governador, como compensação por ser incluída no consórcio que reformou o Maracanã. Na data do vencimento, os cheques eram trocados por dinheiro. Já na H.Stern, as compras chegaram a R$ 2,3 milhões em nove aquisições. Havia até uma gerente que atendia Adriana e Cabral em casa. Uma das compras, feita por Cabral, também ocorreu em data especial. O conjunto de brincos e anel com rubi, também no valor de R$ 1 milhão, foi adquirido em 10 de abril de 2014, quando os dois fizeram dez anos de casados.
Com Cabral num restaurante  em Monaco,com joia comprada por  Cavendish (Foto:  Reprodução)
O casal era afeito a comprar mimos em grifes estrangeiras. Policiais federais apreenderam, no apartamento do Leblon, pelo menos nove relógios, das grifes Rolex, Cartier, Laurens e Vacheron Constantin, além de joias da Bvlgari, da Van Cleef & Arpels, da Tiffany & Co. e da Chopard. De acordo com as investigações, outros R$ 4 milhões foram lavados com a compra de diamantes, guardados em cofres no exterior. A ocultação desses ativos brutos foi revelada pelos irmãos delatores Marcelo e Renato Chebar, doleiros e operadores da propina de Cabral. Como se sabe desde que Cabral assumiu o governo do Rio, viajar para o exterior era outro hábito do casal. As investigações mostraram que, além de Paris, Cabral e Adriana visitaram Londres e Dubai, entre 2014 e 2015. Gastaram perto de R$ 287.500 nas duas viagens em dinheiro – de acordo com os procuradores, dinheiro resultante de propina. Em Dubai, Adriana ficou com seus filhos no luxuoso hotel The Palms, com diária de até R$ 47 mil.
Quando vivia no Leblon e nem imaginava conhecer Bangu, Adriana usava joias, sapatos Louboutin e gostava de pagar suas contas em dinheiro. Em 2012 ela comprou o que os investigadores chamam de “equipamentos gastronômicos” e pagou R$ 72 mil em dinheiro. Comprou R$ 33.600 em móveis e pagou do mesmo jeito. Em 2014, Adriana adquiriu dois minibuggies por R$ 40 mil; pagou R$ 25 mil em espécie. Entre 2009 e 2014, a ex-primeira dama gastou outros R$ 110 mil em eletrodomésticos. Muitos deles foram pagos em parcelas, na maioria das vezes pouco abaixo de R$ 10 mil. Adriana ainda comprou seis vestidos, no valor total de R$ 57 mil, também em pagamentos fatiados. Para os procuradores, era uma esperteza de quem sabia que fazia algo errado: o objetivo era escapar da obrigação que empresas têm de declarar o depositante quando o valor ultrapassa os R$ 10 mil. Era gastar aos poucos para não entrar no radar da lei.
 (Foto:  )
Uma análise da declaração de rendimentos de Adriana e seu escritório de advocacia poderia indicar que os gastos da ex-primeira-dama não estavam tão descolados de sua renda como advogada bem-sucedida – se a trajetória de sucesso de sua firma não estivesse intimamente associada ao poder de Sérgio Cabral na política. Boa parte de sua receita vinha de clientes concessionários de serviços públicos no estado do Rio de Janeiro. Outro repasse suspeito, no valor de R$ 1 milhão em 2013, veio da EBX, do ex-bilionário Eike Batista. Ao ser convocado para explicar o pagamento, Eike se enrolou e acabou sendo preso, em janeiro, dois meses depois de Cabral. As investigações e as delações dos irmãos doleiros Marcelo e Renato Chebar mostraram que Eike depositou US$ 18 milhões em contas no exterior atribuídas a Cabral. Entre 2005 e 2015, o ganho anual de Adriana como sócia saltou de R$ 1,2 milhão para R$ 11 milhões, e seu patrimônio declarado de R$ 1,4 milhão para R$ 13,5 milhões.
Com o crescimento de sua renda no escritório, Adriana se sentiu à vontade para comprar, em seu nome, dois apartamentos na sofisticada Rua Prudente de Morais, em Ipanema, em 2012 e 2014. O primeiro, pago à vista, custou R$ 2,3 milhões. O segundo, no mesmo prédio e coluna, por R$ 4,6 milhões, pagos em três parcelas, entre junho e agosto – para a Receita Federal, porém, o preço pago foi de R$ 3,3 milhões. Comprou também uma nova casa no condomínio Portobello, em Mangaratiba, onde já alugavam uma casa por R$ 100 mil anuais e para onde todos iam no helicóptero do governo do estado.
Adriana pagava em parcelas inferiores a R$ 10 mil cada, para evitar rastreamento no sistema bancário
As joias apreendidas estão sob custódia da Polícia Federal. O dinheiro depositado no exterior foi repatriado pelos irmãos Chebar. O juiz Marcelo Bretas autorizou o uso de parte dos recursos, R$ 250 milhões, para pagamento do 13º salário dos aposentados estaduais. A reversão da propina em pagamentos a servidores em penúria é chocante, por dar tons de materialidade e realidade à corrupção.
A defesa de Carlos Miranda diz que ele nunca fez compras em nome de Adriana. A defesa de Adriana não respondeu aos pedidos de entrevista. Na sexta-feira, dia 31, o Ministério Público Federal recorreu da decisão do STJ de permitir que Adriana cumpra pena em casa. Ela vai responder a três ações penais por lavagem de dinheiro e organização criminosa. Por enquanto, Adriana poderá esperar o trâmite do processo em casa, ao lado dos filhos. Não terá mais suas joias. Os sapatos Louboutin só servirão para desfilar no corredor. Mas, pelo menos, a privada com assento aquecido instalada em seu banheiro continua em funcionamento. Não foi apreendida pela Polícia Federal.

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