História e natureza se misturam na região marcada pelo legado de Henry Ford

As ruínas dos grandes galpões de beneficiamento do látex com maquinário original, do antigo hospital, do cemitério e da escola, entre outros, são testemunhas silenciosas da passagem do tempo

Por entre casas pintadas de verde e branco, igrejas, galpões em ruínas e outras construções, e uma paisagem exuberante às margens do Rio Tapajós, é possível ligar os pontos de uma história iniciada no final dos anos 1920, que colocou o Pará, e a Amazônia, em destaque no cenário internacional. O combustível foi a Hevea brasiliensis, conhecida pelos nativos como seringueira, por meio do projeto de expansão da produção de borracha para alimentar as fábricas de automóveis do empresário norte-americano Henry Ford, considerado um dos homens mais ricos e conhecidos do mundo à época.

Dois municípios do oeste paraense preservam o legado desta época: Aveiro e Belterra. Aveiro é uma cidade de quase 16 mil habitantes, distribuídos em 114 comunidades, uma delas escolhida para abrigar uma cidade nos moldes americanos. As negociações começaram nos anos 1920, quando Henry Ford enviou representantes para a Amazônia e começou a pesquisar terras férteis para produzir o látex que seria utilizado em suas fábricas pelo mundo, e escolheu uma grande área em Aveiro, rica em terra preta, como base da sua investida.

Dos Estados Unidos, em dois grandes navios, veio toda a infraestrutura necessária para criar um ambiente que atendesse às necessidades do projeto. Em 1928 já estavam com as primeiras instalações operando, dando origem a Fordlândia."Era uma cidade planejada. Tinha água encanada, sistema de saneamento e até campo de esportes americanos para a comunidade local e a direção do projeto", informou o pesquisador santareno Hélcio Amaral.

O projeto atraiu trabalhadores de toda a América, além de brasileiros que fugiram da seca nordestina. Cindo mil foram recrutados. O pesquisador explicou que a cidade era dividida de acordo com a função de cada grupo. Os administradores americanos moravam na chamada "Vila Americana", composta por cinco casas. Já os que tinham melhor habilidade profissional, ficavam na "Vila Operária".

"As moradias foram construídas no estilo americano, e seus acabamentos eram feitos de acordo com o cargo de cada um, sendo que os americanos tinham o privilégio de morar nas melhores. As cores - branco e verde-, a arquitetura, nada era vinculado ao Brasil. Tudo remetia a cidades do país estrangeiro", contou Hélcio Amaral.

Cidade modelo

"Naquela época, os investimentos maiores eram voltados para a região sudeste, e Fordlândia passou a ser uma cidade modelo. Ford não queria só produzir, mas mostrar a realização do poder econômico que ele tinha conquistado, com belas casas, um hospital de ponta, uma caixa d'água imponente, que poderia ser vista de qualquer lugar, cinema, rede de distribuição, água potável, entre outros. Uma estrutura que nem Santarém ou Belém tinham na época", complementou o professor e historiador Luiz Magno Ribeiro.

Mas o americanismo de Henry Ford ultrapassou os limites da arquitetura. As diferenças culturais eram visíveis em todos os aspectos da vida cotidiana, como vestuário, crenças, modo de encarar o trabalho e o lazer. Com isso, o surgimento de conflitos era só uma questão de tempo. Até que o descontentamento chegou à mesa dos trabalhadores, e em 1930 protagonizaram uma revolta conhecida como “quebra panelas”.

"Os americanos retiraram a farinha da alimentação, e a substituíram pelo pão. Essa, entre outras, foram mudanças alimentares radicais para o homem da Amazônia. Conta a história que eles se rebelaram e chegaram a expulsar alguns americanos, que tiveram que se abrigar em fazendas próximas à cidade. Foi preciso, inclusive, a intervenção de forças policiais para conter a situação. Eles queriam apenas a introdução de produtos regionais na sua alimentação", relatou Hélcio Amaral.

Lembranças históricas

Quase 90 anos depois, Fordlândia ainda mantém viva a memória daquela época. Andar pela cidade é como visitar um museu a céu aberto. As ruínas dos grandes galpões de beneficiamento do látex com maquinário original, do antigo hospital, do cemitério e da escola, entre outros prédios requintados, são testemunhas silenciosas da passagem do tempo. E a cada passo dado, é como se mergulhássemos nos velhos livros de história.

Descendentes de trabalhadores falam com saudosismo, e relembram o cenário de prosperidade. "Nasci no hospital de Fordlândia, que depois do término do projeto continuou funcionando por algum tempo. Meu pai trabalhava para o Ford, era vigia de um dos galpões, e tanto ele como minha mãe me contavam muitas histórias que tinham vivido. Diziam que era um período muito bom. Eu mesma já morei em algumas casas daquela época, tudo isso já no período em que as propriedades eram administradas pelo governo brasileiro", relembrou Glaide do Socorro Gomes, 54 anos.

O historiador Luiz Magno Ribeiro, também nascido em Fordlândia, utiliza sua profissão como forma de divulgar e preservar a história do local. Ele contou que seu pai é um apaixonado pelo projeto de Ford, e transmitiu a ele esses valores. "Ele era limpador das seringueiras, e até hoje, aos 90 anos, fala com muito saudosismo sobre o projeto de Ford. Em uma região em que o emprego formal era quase inexistente, quando chega uma empresa que passa a remunerar o trabalhador com carteira assinada, isso muda a vida da pessoas. Naquela época, era o sonho de todos", destacou.

Riquezas naturais

Além de Fordlândia, outras comunidades de Aveiro são conhecidas por suas riquezas naturais. A partir do mês de agosto, belas praias surgem às margens do Rio
Tapajós atraindo turistas de várias regiões. A pesca esportiva também é uma atividade muito procurada durante todo o ano. No município está a caverna Paraíso, a maior da Amazônia, com mais de 1.600 metros de extensão, e primeira em calcário catalogada na região. Aveiro é conhecido ainda por abrigar o maior berçário de tartarugas da Amazônia, na localidade conhecida como Tabuleiro de Monte Cristo.

As belas paisagens e curiosidades históricas atraem turistas de todos os lugares do planeta. O biólogo argentino Matias Carnavale, e sua namorada Eliana Morales, são aproveitaram as férias para conhecer um pouco mais sobre a Amazônia, em especial a presença de Ford na região. "É a minha sexta vez no Brasil, e a nossa primeira vez na Amazônia brasileira. O que nos atraiu para Fordlândia foi a singular história do lugar. Ficamos curiosos para saber como uma cidade da América do Norte foi reproduzida no meio da Amazônia, mas a curiosidade maior foi de minha namorada, que sugeriu a visita", comentou o biólogo.

"Fiquei sabendo desse lugar fazendo pesquisas na internet, e me interessou muito. Queria conhecer o local da Amazônia onde quiseram construir uma cultura americana. Para mim, isso era uma loucura de Henry Ford. Fiquei impressionada com as fotos e quis ver de perto os vestígios deixados pelo projeto. Eu, realmente, gostei muito de conhecer um pouco mais dessa história", acrescentou Eliana Morales.

"Em nenhuma parte do mundo Ford tinha investido tanto, a não ser dentro do próprio Estados Unidos, e os turistas ficam se questionando o que o levou a esse
sonho? E lá estava o magnata, homem riquíssimo, que não mediu esforços para fazer. Os países europeus colonizaram outras áreas, tendo como base a exploração, jamais vieram povoar ou deixar algo imponente. Ford não veio colonizar, ele veio construir, veio deixar um legado que até hoje pode ser visto", ressaltou o historiador Luiz Magno Ribeiro.

Expansão dos negócios

Além das diferenças culturais, o projeto de Ford não levou em consideração a forma de plantio da seringueira, e com o tempo descobriu-se que a espécie era pouco resistente aos fungos e outros males da época. Com o fracasso da produção em Fordlândia, o magnata da indústria automobilística buscou uma nova área para expandir sua produção. "Quando o projeto não atendeu toda a demanda inicial, e algumas dificuldades de ordem financeira, e até mesmo técnica, surgiram, eles fizeram mais uma tentativa. Estenderam a produção até Belterra, para que se pudesse, no mínimo, conseguir recuperar parte do grande investimento feito na área", pontuou Luiz Ribeiro.

O projeto em Belterra iniciou em 1934 com o plantio de cerca de 3,2 milhões pés de seringueiras, e a partir daquele ano Ford criou estrutura semelhante à de Fordlândia, com casas também divididas de acordo com a função dos trabalhadores. Em Belterra, a estrutura está melhor preservada. Algumas moradias da Vila Operária e dos Mensalistas ainda são habitadas, e mantêm os traços originais da época, assim como os imóveis da Vila Americana que abrigam algumas secretarias do poder municipal. "O prédio que abriga a prefeitura, inclusive, sempre foi o Centro Administrativo de Belterra desde 1934", complementou o pesquisador Antônio Evandro Mota de Castro.

Além do patrimônio arquitetônico, Belterra procura preservar as tradições da época de Ford. Da caixa d'água, construída em 1934, por exemplo, ainda ecoa pelas ruas silenciosas da cidade uma sirene, às 06, 7, 11h30, 13 e 16 horas, referentes à entrada, aos intervalos para refeição e ao término das atividades do dia. "Essa é mais uma forma de mantermos vivos os costumes da época", ressaltou o pesquisador.

Porém, mais uma vez o projeto de Ford fracassou, e em 1945 ele fez um acordo com o governo brasileiro: foi indenizado e encerrou suas atividades no país. "Alguns fatores foram fundamentais para que o projeto não tivesse seguimento. Com o término da segunda Guerra Mundial, a indústria bélica parou de consumir a borracha natural. Os britânicos também detinham o monopólio da produção lá na Ásia e, a partir de então, há uma grande quantidade de borracha no mercado internacional. O próprio aparecimento em escala industrial da borracha sintética também contribuiu", esclareceu Antônio Castro.

Entre as décadas de 1950 e 1980, Fordlândia passou a abrigar as instalações do Ministério da Agricultura, e as casas foram ocupadas por seus funcionários. Mas depois as atividades do órgão no local foram encerradas. Com o fim do projeto, Belterra voltou a fazer parte do município de Santarém, e somente em 1995 tornou-se oficialmente um município.

O mais curioso de toda essa história é que Henry Ford morreu em 1948 sem nunca ter pisado em suas terras amazônicas. "Mesmo com milhões de dólares investidos nessa região, mesmo sendo preparada uma casa para recepcioná-lo - tanto em Fordlândia quanto em Belterra -, o medo das doenças tropicais, como a malária, e das fantasias e mitologias que se falam até hoje da Amazônia, fez com que ele nunca chegasse a visitar o projeto. Sua administração era feita a distância, por seus representantes", disse o historiador Luiz Magno Ribeiro.

Turismo

Além ser conhecida por respirar história, Belterra se destaca por seus encantos naturais, traduzidos em belas praias às margens do Rio Tapajós, como Aramanaí, Maguari e Cajutuba. Entre as mais visitadas pelos turistas está Pindobal, com suas águas calmas e mornas, ideal para desfrutar em família. A baiana que mora na Noruega, Elizangela Ulveseter, 34 anos, há dois anos vem com seus familiares, e considera o lugar um verdadeiro paraíso. "Uma das coisas que mais me impressionam é o pôr do sol deste lugar. É incrível. Já visitei outros lugares do Brasil, mas aqui tem algo diferente. Isso aqui é maravilhoso, uma paisagem e tranquilidade que você não encontra em qualquer lugar. A culinária local também é maravilhosa, e vale a pena visitar", afirmou Elizangela Ulveseter.

Quem também faz questão de trazer a família ao paraíso é a ortodontista Ivana da Silva Lemos, 34 anos. Paraense de Rurópolis, ela contou que todos os anos, durante suas férias, visita a praia, e garantiu que "esse é o lugar ideal para curtir com os filhos, com tranquilidade e segurança". "As águas são calmas, a paisagem é singular e para quem tem crianças é importante pensar em locais em que eles também possam se divertir e brincar livremente. Nesse sentido, Pindobal é a melhor opção. Recomendo a todos", declarou Ivana Lemos.

Serviço: O acesso a Fordlândia (Aveiro) e Belterra é feito via Santarém. Partindo de Belém, saem voos diários até o município.

Fordlândia - A maneira mais rápida de chegar até a cidade é pelo Rio Tapajós. A viagem dura em média 5 horas, e é feita em lanchas que saem diariamente às 8 h e 13 h, do Porto de Santarém, com passagens a R$ 73,00. O local possui duas pousadas com infraestrutura rústica e confortável, com diárias que variam de R$ 60,00 (individual) a R$ 120,00 (casal).

Belterra - Não há lanchas de linha para fazer o trajeto. O acesso mais rápido é feito por via terrestre, pela BR-163, em um trecho todo asfaltado e de fácil trafegabilidade. A viagem dura em média 40 minutos. O município dispõe de hotéis, pousadas e redários, com diárias a partir de R$ 50,00.


Fonte: Agência Pará/Lidiane Sousa

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