Artigo do advogado Allan Titonelli Nunes, Procurador da Fazenda Nacional, ex-Presidente do Sinprofaz
A escolha do Brasil para sediar a Copa
do Mundo e a cidade do Rio de Janeiro para receber as Olimpíadas trouxe
um sentimento de orgulho aos brasileiros. Ao mesmo tempo gerou um
otimismo com a expectativa de injeção de capital e viabilização de obras
estruturais que contribuiriam para melhorar a qualidade de vida dos
cidadãos brasileiros. Todavia, ao que parece, esse anseio não será
concretizado.
Durante a realização da Copa das
Confederações a insatisfação da população com a má gestão do erário
provocou uma onda de manifestações contra o desperdício de dinheiro
público empregado na construção de estádios (que em muitos casos se
tornarão “elefantes brancos”), contra os benefícios fiscais concedidos à
Fifa, contra as viagens feitas às custas dos cofres públicos para que
políticos pudessem participar de convescotes e assistissem aos jogos do
Brasil, entre outros fatos.
Mais recentemente os clubes de futebol
passaram a fazer grande pressão junto ao Governo para que fosse editado
um novo parcelamento fiscal objetivando regularizar seus débitos, o que
na prática concretizará mais um perdão de dívidas fruto da sonegação.
Importante ressaltar que mesmo tendo
sido concedido pelo Governo Federal mais de cinco parcelamentos
excepcionais nos últimos dez anos os clubes de futebol, em regra geral,
não conseguiram se organizar para regularizar a situação fiscal perante a
União. Lembrando que o Timenania (um desses parcelamentos excepcionais)
foi comemorado pelos clubes como a salvação para seus débitos fiscais, e
apenas parte ínfima deles estão pagando as parcelas regularmente.
Enfim, constata-se que há uma política
reiterada das administrações dos clubes, mais conhecida como cartolagem
no jargão boleiro, de privilegiarem os investimentos no elenco para
poderem ter capital político e permanecerem no poder em detrimento do
cumprimento dos deveres previstos em lei, dentre eles o pagamento de
tributos.
Independente da paixão que o futebol
desperta nos brasileiros devemos lembrar que a atividade financeira do
Estado moderno está ligada à necessidade de captar, gerir e executar os
recursos públicos para a concretização dos interesses da sociedade.
Logo, para o alcance dos objetivos e atividades a serem exercidas pelo
Estado será necessária a arrecadação de recursos, a qual não se esgota
em si mesma, sendo um instrumento para a concretização do bem comum.
Ocorre que para a construção de um país
mais igualitário é primordial que todos contribuam, na medida de suas
possibilidades. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir
com suas obrigações, como é o caso dos clubes de futebol que, em sua
maioria, deixam de pagar deliberadamente os tributos.
Nesse pormenor, recente estudo publicado
pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional
(Sinprofaz), nominado como “Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do
Desvio da Arrecadação”[1] constatou que, levando em conta a média dos
indicadores de sonegação dos tributos que têm maior relevância para a
arrecadação (ICMS, Imposto de Renda e Contribuições Previdenciárias),
poder-se-ia estimar uma sonegação de 28,4% da arrecadação, a qual
equivale a 10% do PIB, representando o valor de R$ 415,1 bilhões caso
levado em conta o PIB do ano de 2011. Portanto, tomando esse indicador
como base poder-se-ia afirmar que se não houvesse evasão, o peso da
carga tributária poderia ser reduzida em quase 30% e ainda manter o
mesmo nível de arrecadação, promovendo, assim um benefício para toda a
sociedade.
A título comparativo podemos ainda dizer
que o desvio provocado pela sonegação é muito maior do que a corrupção,
onde estudos da Fiesp constatam que o custo médio anual da corrupção no
Brasil pode ser calculado entre 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões,
representando aproximadamente de 1,5% a 2,6 % do PIB.[2]
Somado a isso, e diante da
regressividade do sistema tributário brasileiro, tendo em vista a
prevalência da matriz tributária sobre o consumo, a sonegação é ainda
mais nefasta para com os mais pobres, os quais, por consumirem
praticamente toda sua renda, não possuem meios para sonegar, pagando
ainda, proporcionalmente, maior tributação. Isso se comprova pelo fato
de que quem ganha até dois salários mínimos paga quarenta e nove por
cento dos seus rendimentos em tributos, mas quem ganha acima de trinta
salários paga vinte e seis por cento. Portanto, o contribuinte de baixa
renda além de não ter mecanismos para promover a sonegação, uma vez que
grande parte da incidência de sua tributação é sobre o consumo, ainda
tem de arcar com o peso da sonegação dos outros.
Enfim, para eliminar essa injustiça
fiscal é essencial que o Estado seja dotado de órgãos de arrecadação bem
estruturados para exercer o combate à sonegação. Por essa razão, o
Ordenamento Jurídico Brasileiro incumbiu à Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional (PGFN) a arrecadação dos tributos e demais receitas, não pagas
e inscritas em dívida ativa da União.
A cobrança dos créditos inscritos em
dívida ativa da União garantirá a isonomia entre o devedor e o cidadão
que paga seus tributos, evitando, também, a concorrência desleal e todas
as suas consequências nefastas, como o desemprego.
Um órgão de recuperação bem aparelhado e
independente propiciará a diminuição da sonegação, garantindo,
consequentemente, maior disponibilidade de caixa para a execução das
políticas públicas.
Todavia, a política fiscal do governo
passa ao largo dessa realidade. Primeiro porque o órgão responsável pela
execução das dívidas tributárias (PGFN) carece de uma carreira efetiva
de apoio, estrutura física, técnica e instrumental adequadas para o
exercício das atividades dos Procuradores da Fazenda Nacional, carreira
esta que sequer tem seus quadros completos (centenas de cargos vagos não
foram providos), os seus sistemas informatizados não são integrados,
entre outros problemas.
Segundo porque os parcelamentos cíclicos
alimentam a sonegação, na medida em que projetam “planejamentos
tributários” em que os sonegadores podem de tempos em tempos regularizar
sua situação fiscal protraindo o pagamento dos débitos no tempo, o que
está em vias de acontecer com os clubes de futebol. Para ilustrar basta
tomarmos como referência o último parcelamento excepcional editado pelo
Governo Federal, o Refis da Crise. Assim, se um devedor tivesse adotado a
prática deliberada de sonegar, aplicando o valor do tributo não pago em
renda fixa ou outro investimento similar, e tivesse optado pelo
referido parcelamento adotando o pagamento à vista, com desconto de
multa, juros e encargos, teria ainda tido lucro com tal operação[3].
Diante desse quadro quando se observa
determinado cartola de futebol reclamando na mídia do trabalho realizado
pelos Procuradores da Fazenda Nacional, chegando inclusive a
pressioná-los no exercício das atribuições, pensa que assim conseguirá
um parcelamento de seus débitos. Parece até que sonegar é o correto, ou
ainda, uma prática tolerável. Talvez esse cartola fundamente seu
raciocínio na idolatria que o futebol desperta, provocando a sensação de
que os clubes estariam à margem do Estado Democrático de Direito.
Contraditoriamente ao discurso de crise
ou falta de recursos, os clubes estão aumentando cada vez mais sua
arrecadação, gastando milhões no pagamento de seus atletas e técnicos e
ainda se acham no direito de deixar deliberadamente de pagar tributos
para depois pressionar o governo, a cúpula da PGFN e da Advocacia-Geral
da União (AGU) para a concessão de parcelamento ou barganhar descontos.
Nesse contexto é importante registrar
que, mesmo considerando as precariedades existentes, os Procuradores da
Fazenda Nacional estão cumprindo com seu mister, protegendo o
dinheiro do povo, pois através do seu trabalho, durante os últimos três
anos foram economizados mais de R$ 1 trilhão aos cofres públicos, bem
como arrecadado mais de 60 bilhões de reais. Logo, cada R$ 1 investido
no órgão traz um retorno de mais de R$ 700 para a sociedade e o estado.
Pode-se somar aos dados aqui
apresentados o alto índice de vitórias da PGFN nas causas em que há
contestação, aqui tomado em sentido lato, chegando a 88% de vitórias,
comprovando a alta especialização e dedicação dos Procuradores da
Fazenda Nacional.[4]
Inexorável ressaltar que esses
resultados foram atingidos a despeito de uma carga de trabalho e
condições impostas aos integrantes da PGFN serem bem inferiores àquelas
existentes no Poder Judiciário, paradigma em relação aos
órgãos/instituições envolvidas com a prestação jurisdicional, o qual
conta com cerca de 19 servidores para auxiliar o trabalho de cada juiz
Federal, enquanto os procuradores da Fazenda Nacional têm uma média de
menos de um servidor para apoiar as atividades de cada membro. Isso sem
registrar que cada procurador da Fazenda Nacional é responsável por uma
média de 7 mil processos judiciais, carga 30% maior que a dos
magistrados federais, sem contar as inúmeras atividades administrativas
atinentes aos Procuradores da Fazenda Nacional.[5]
Esses números demonstram que a realidade
existente na PGFN não é condizente com a condição estratégica do órgão,
bem como o fato de que a União não tem combatido a sonegação de forma
efetiva.
A esse respeito temos que a preservação
da função estratégica da atividade de fiscalização e arrecadação da
União é garantida desde a criação do Fundo Especial de Desenvolvimento e
Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf) por meio do
Decreto-Lei 1.437/75, o qual tem como escopo financiar o reaparelhamento
e reequipamento das atividades de fiscalização e arrecadação da União,
conforme preconiza o artigo 6° da legislação citada. Todavia, a União, a
despeito do que determina a Lei 7.711/88, a qual vincula as receitas do
fundo, na subconta da PGFN, para reestruturação do órgão, tem
contingenciado esses valores para os fins mais diversos possíveis, entre
eles a realização do superávit primário.[6]
A falta de cumprimento da lei e a
possibilidade de intervenção política para favorecer sonegadores
contumazes, como é o caso de grande parte dos clubes de futebol,
evidenciam que o combate à sonegação não tem papel relevante para o
Governo Federal. Ao permitir a eternização dessa realidade a
administração federal desdenha de milhões de brasileiros que trabalham
quase quatro meses por ano para pagar seus tributos.
Allan Titonelli Nunes é Procurador da Fazenda Nacional, ex-Presidente do Sinprofaz e do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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