A atriz pode assumir a bagunçada pasta com a missão de
enfrentar os delírios ideológicos dos bolsonaristas e a desconfiança da classe
artística
Ao desembarcar em
Brasília na última quarta-feira, ainda sem confirmar se aceitaria o convite
para assumir a Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro, Regina
Duarte tentou escapar do assédio de fãs e jornalistas, saindo discretamente por
uma área de serviço do aeroporto. Lá, dois carros da Presidência da República
aguardavam para levá-la ao Palácio do Planalto. Surpreendida pelos repórteres,
ela foi bombardeada com perguntas, não respondeu a nenhuma, mas foi cordial,
educada e… sorriu — cena rara de ver em Brasília nos últimos tempos. Num
ambiente repleto de figuras carrancudas e muitas vezes grosseiras, a simpatia
da atriz já representa um tremendo diferencial. O cargo, porém, exigirá de
Regina Duarte outros talentos. No papel de secretária de Cultura, ela dividirá
o palco com personagens que, na vida real, acreditam que a Terra é plana, que o
rock é coisa do diabo, que o analfabetismo é culpa de artistas e que a
escravidão no Brasil foi boa para os escravos — e quem discorda dessas sandices
corre o risco de ser considerado inimigo e tachado de esquerdista. Como se não
bastasse, a atriz ainda vai defrontar com as resistências dentro do próprio
governo, a desconfiança de alguns colegas e um processo movido contra ela pela
pasta que vai chefiar. Parece enredo de novela, com aquelas pitadas de drama e
mistério que costumam fazer o sucesso dos bons folhetins.
Entre as muitas
cruzadas do governo de Jair Bolsonaro, poucas são tão intensas e tumultuadas
quanto a deflagrada na área da cultura, em nome da família, dos valores
cristãos e do combate ao “marxismo cultural”. Em 16 de janeiro, o presidente
abriu a sua live semanal com um elogio ao então secretário especial da Cultura,
o diretor teatral Roberto Alvim, que estava sentado a seu lado. “Depois de
décadas, agora sim temos um secretário de Cultura de verdade, que atende ao
interesse da maioria da população brasileira, população conservadora e cristã.
Muito obrigado por ter aceito a missão. Você sabia que não ia ser fácil, né?”,
disse Bolsonaro. “É, mas estou implicado nela até o último fio de cabelo”,
respondeu Alvim, que havia se notabilizado por ofender a atriz Fernanda
Montenegro, a quem chamou de “sórdida” e “mentirosa”. A parceria entre o
presidente e o auxiliar parecia sólida, mas ruiria horas depois, quando se
tornou público um vídeo em que o secretário, ao lançar um prêmio cultural,
fazia plágio de um discurso de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de
Adolf Hitler. Alvim reproduziu não apenas as expressões verbais, mas até a
estética nazista, tudo nos mínimos detalhes.
A reação foi suprapartidária, multissetorial e uniu os extremos
opostos do espectro ideológico. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do
Senado, Davi Alcolumbre (de origem judaica), pediram a demissão de Alvim, em
coro reforçado pelo embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley.
Representantes de governos estrangeiros também repudiaram o monólogo de
inspiração nazista encenado pelo secretário. A insanidade foi tamanha que até o
destrambelhado Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo e da ofensiva contra
o marxismo cultural, se manifestou: “É cedo para julgar, mas Roberto Alvim
talvez não esteja bem da cabeça”. Já na sexta 17, a demissão foi sacramentada,
e o presidente decidiu convidar Regina Duarte, que se aproximou de Michelle
Bolsonaro ao participar do conselho de um programa oficial idealizado pela
primeira-dama. Com cinquenta anos de carreira e dezenas de papéis de
protagonista em novelas da Globo, Regina Duarte já havia recusado convite
semelhante no ano passado. Desta vez, Bolsonaro foi ao encontro dela numa sala
reservada do Aeroporto Santos Dumont, acompanhado do ministro da Secretaria de
Governo, Luiz Eduardo Ramos, e do secretário de Comunicação da Presidência,
Fabio Wajngarten.
Na reunião,
Regina Duarte afirmou acreditar piamente no governo e disse se sentir feliz
pelo convite. Ela fez dois pedidos. Primeiro: levar para Brasília uma
secretária particular que trabalha com ela há décadas. Aceito. Segundo: ter
autonomia para montar a equipe. Bolsonaro deu um “o.k.” relativo, realçando o
seu poder de veto. A composição da equipe pode parecer coisa pequena, uma
preocupação desmedida com cargos de segundo e terceiro escalões, mas não é. Em
sua cruzada contra a arte progressista, que afrontaria a arte “heroica”,
“nacional” e “imperativa” inspirada em Goebbels, o demitido Alvim convocou um
escrete de extremistas para a Secretaria da Cultura. Com o objetivo de combater
o que dizia mais repudiar na esquerda, escalou o que há de mais contundente
entre os que os bolsonaristas chamam de conservadores. A presidência da
Fundação Nacional de Artes (Funarte) foi entregue ao maestro terraplanista
Dante Mantovani, para quem “o rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre,
que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo”. Para a Fundação
Palmares, órgão que promove a cultura negra, foi nomeado o jornalista Sérgio
Nascimento, cuja posse foi suspensa pela Justiça depois de ele afirmar que o
Brasil tem um racismo “Nutella” e que a escravidão foi benéfica para os
descendentes de escravos.
Comentários