Trote contra calouras da Ufra foi estupro, diz advogada


       Banalização da cultura do estupro explica episódios recentes


Por: Redação Integrada ORM
Os episódios que resultaram em 12 estudantes molestadas, em junho de 2017, durante o trote de calouros da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) -, cujo caso resultou em arquivamento do processo investigativo interno da universidade, sem que nenhum responsável fosse apontado ou punido – podem ser considerados crimes de estupro, segundo o que diz o atual Código Penal Brasileiro. É o que aponta a advogada Yasmin Galende, mestranda em Direitos Humanos pelo Centro Universitário do Pará (Cesupa), que foi consultada pela Redação Integrada ORM para tipificar criminalmente, segundo o que aponta a legislação brasileira, os episódios narrados por duas vítimas ouvidas por O Liberal em reportagens publicadas na última sexta-feira (10) e no domingo (12).
"É estupro você constranger alguém, ou seja, você forçar alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique algum ato libidinoso. Acredito que seja um ato violento você jogar lama, impedir alguém de enxergar, e se valer da força e do constrangimento para ter essa pessoa vulnerável, na sua frente, para passar a mão no corpo dela, como ocorreu no trote contra calouras da Ufra no ano passado”, avalia Yasmin Galende. “Claramente, esses são atos de assédio físico contra pessoas. Portanto, são atos libidinosos, que nada mais são, justamente, do que atos para suprir a lascívia sexual", pontua.
A advogada lembra que este tipo de crime não necessariamente precisa ter um caráter agressivo para ser tipificado. “Qualquer ato que viole a dignidade sexual, sem o consentimento da mulher, qualquer ato que toque o corpo da mulher sem o consentimento dela, em uma situação de constrangimento, humilhação e violência, como um trote desses, se enquadra numa situação de crime de estupro", esclarece Galende.
Atos
Para a pesquisadora, entender como a cultura do estupro, o machismo, a misoginia e o assédio andam de mãos dadas com a violência contra as mulheres no Brasil, pode ajudar a esclarecer melhor o contexto dos recentes episódios envolvendo a Ufra. Ao todo,  já foram mais de dez denúncias, feitas junto à Polícia Civil do Pará, contra cinco alunos da universidade, acusados na semana passada de compartilhamento de mensagens com ofensas, injúrias, difamação e até ameaças de estupro contra alunas da universidade, em um grupo criado através da rede WhatsApp.
As denúncias levadas à Polícia Civil serão motivo de mais um ato a ser realizado esta terça-feira (14) na Ufra. Ao longo de todo o dia, a partir das 8h, estudantes da universidade realizarão protestos ligados ao Primeiro Dia de Combate a Opressões na Ufra. As ações estão sendo agendadas para o campus da universidade, na avenida Perimetral.
“A cada duas horas, uma mulher é assassinada enquanto outras onze são estupradas no País, apontam dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Organização Mundial da Saúde. Isso significa que, a cada ano, 527 mil mulheres são estupradas no Brasil. É um caso a cada 11 minutos. E desse total, só 10% dos casos são denunciados, e 6% vão à julgamento. E o número de condenações é ainda menor”, aponta a advogada.
Yasmin Galende lembra que esse cenário é mais amplo e coloca hoje o Brasil na sétima posição entre os países mais perigosos para mulheres em todo o mundo. São tons gritantes, mas com cores ainda piores no Pará, que ocupa o 8º lugar entre estados brasileiros onde mais ocorrem estupros, segundo dados do relatório de 2018 do Anuário de Segurança Pública. No mapa da cultura do estupro no Brasil, o Estado desponta com 39,8 casos registrados a cada 100 mil habitantes.

Naturalização
Para a advogada Yasmin Galende, a banalização de um crime de estupro cometido contra 12 estudantes, legitimado por um rito de passagem em uma universidade pública, e ignorado por um processo de apuração institucional que acabou arquivado na Ufra, levanta várias questões e também expõe como a cultura do estupro se entranha no prosaico cotidiano brasileiro, inclusive nas salas de aulas de universidades.   “Os trotes universitários são perpetuados e permitidos pelas universidades porque são considerados tradições. E como muitas tradições, são naturalizados, compreendidos como algo normal, que deve acontecer porque ‘é assim mesmo’”, pondera Galende. 
Ela lembra que movimentos sociais já apontam que trotes como esses vêm se tornado notoriamente cada vez mais violentos e atentatórios aos direitos humanos e à integridade física das suas vítimas. “Acabam sendo, na verdade, não mais um momento de interação entre veteranos de uma universidade e os calouros. É, mais uma vez, uma manifestação de uma relação de poder e hierarquia, perpetuando uma violência que já vem ocorrendo na sociedade. A violência contra a mulher e todas as outras violências e preconceitos sociais do âmbito macro da sociedade, são transmitidos para essa pequena comunidade institucional, do âmbito micro, e acabam sendo reproduzidos”.
Segundo argumenta Galende, essa questão é extremamente delicada quando se envolve questões como agressões contra o corpo da mulher. “Na sociedade em geral, nós já temos uma infeliz noção de que a mulher serve enquanto objeto do prazer e do desejo sexual, para a satisfação masculina. E quando o corpo da mulher é utilizado dessa forma, enquanto objeto do prazer alheio, ela deve permanecer em silêncio, porque, segundo essa lógica, esse seria seu papel natural, porque ‘é assim que as coisas são’”, ressalta.
Yasmin Galende ainda vai mais além: a cultura do estupro, no caso dos dois episódios relatados desde junho do ano passado por estudantes da Ufra, também explica como processos internos de apuração podem caminhar para arquivamentos sem que culpados sejam punidos. 
“Fazer as vítimas seguirem ritos morosos, colocá-las em vários depoimentos seguidos frente aos abusadores, é uma maneira de fazer com que desistam frente à burocracia, ao cansaço e à humilhação. Isso faz com que os sistemas administrativos e institucionais tornem essas mulheres vítimas mais uma vez. Desta vez, não por um crime diretamente cometidos por eles, mas por crimes com os quais eles acabam sendo coniventes. Isso também faz parte da cultura da violência e do estupro no Brasil”, assevera a advogada.    
O caso
Dois dos cinco acusados de praticar crimes de injúria, difamação, racismo e apologia e incitação ao estupro contra estudantes da Universidade Federal Rural do Pará (Ufra) já foram ouvidos ontem (13) pela Divisão de Repressão e Prevenção a Crimes Tecnológicos (DPRCT) da Polícia Civil. Os acusados foram apresentados pelos seus advogados à DPRCT durante a tarde. Os outros três envolvidos no caso serão ouvidos hoje (14).
A Polícia Civil espera que até o final desta semana sejam colhidos os depoimentos de todas as 12 vítimas, citadas pelos conteúdos partilhados nas redes sociais na semana passada. Seis estudantes universitárias já procuraram a delegacia para registrar o caso e outras quatro já comunicaram à polícia a intenção de também fazer boletins de ocorrência para levar adiante as denúncias. 
Para entender: 
- O que é cultura do estupro?
Tenta naturalizar a mulher como objeto a ser manipulado e usado apenas a serviço do prazer e desejos sexuais masculinos. São atos, falas e pensamentos, brincadeiras, piadas, cantadas e outras manifestações, que tentam naturalizar a violência e a submissão sexual da mulher. Frequentemente tenta minimizar a necessidade do consentimento feminino sobre seu corpo e culpabiliza mulheres pelos próprios atos violentos cometidos contra elas. 
- Como identificar o assédio?
É toda situação que cause constrangimento, humilhação ou medo à vítima, e que tenha denotação sexual ou não. Se constranger a mulher, é assédio. Qualquer coisa que venha depois do 'não' da mulher é assédio. 
- O que é assédio sexual?
É considerado crime pelo Código Penal Brasileiro se ocorrer no trabalho, relacionado a hierarquia, cargo, emprego ou função. Apesar de todos os outros assédios existirem, de olhares constrangedores a cantadas, não são ainda crimes na lei brasileira.
- O que é feminismo?
Movimento político e social de luta de mulheres, para que diferenças entre homens e mulheres não sejam traduzidas em relações de poder.
- O que é machismo? 
Não é o contrário de feminismo. É a cultura que cria estruturas de poder e dita como mulheres e homens devem se comportar, através de falas, discursos, ações e estruturas sociais: mulheres teriam papeis sociais inferiores aos papeis dos homens. 
- O que é misoginia?
É ódio contra mulheres, no sentido de repressão a tudo que é feminino, visto como inferior, fraco, digno de humilhação. A misoginia se expressa em falas e comportamentos que inferiorizam a mulher: da cultura do assédio e humilhação ao constrangimento por falas de caráter sexual.

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